luiz fuganti

I de IMANÊNCIA

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I de IMANÊNCIA

Fuganti – Então a imanência, inicialmente, se torna mais clara na medida em que a gente a vê pelo seu contraste, que é a transcendência. O que é a transcendência? É a crença de que o verdadeiramente real está num outro plano que não esse da natureza e da existência do Homem. Estaria num plano divino ou supraceleste, como acreditava Platão. Ou seja, que o mundo verdadeiramente real não está no tempo, não está no espaço e nem na matéria. É um mundo puramente ideal, idêntico a si mesmo. E aí tem o mito da identidade: é aquele do movimento do eterno retorno sobre si mesmo. Portanto, que jamais varia, jamais muda o seu caminho e por isso permanece, é eterno. Então a idéia do imóvel, ou desse movimento circular que não desvia de si mesmo, como sendo a idéia de eternidade. E isso seria o princípio de tudo o que existe. Ou seja, o que existe não teria sustentabilidade própria, precisaria de uma força exterior, um Deus fora. Bom, agora exercendo um pouco da imanência, a gente então tenta detectar o que é que alimenta essa crença. Como é que, de repente, os homens começam a delirar e buscar outro mundo, buscar a transcendência? Qual a origem disso? É que tem algo nesse Homem que delira. E o que é esse algo que delira? É algo nele de insuportável. E o que é algo nele de insuportável? É uma dor, um sofrimento que não encontra sentido no plano da existência.

Então, o que é intolerável para o Homem, como diz Nietzsche, não é exatamente a dor e o sofrimento: é a dor e o sofrimento sem sentido. Ou seja, ele pode ter a pior das dores… desde que tenha um sentido. Então esse homem atormentado, atolado, submetido, separado do que pode, acaba delirando e criando uma outra zona de realidade. E, ao mesmo tempo, ele avalia que essa zona de realidade aqui na existência, nesse plano de natureza, no plano da Terra não é suficiente porque não é perfeita. Por que não é perfeita? Por que o Mal estaria acometendo o Homem o tempo inteiro. Mas o que é o Mal em ultima instância? É o sofrimento e a dor. Então isso vai surgir naquele Homem que não sabe usar a dor e que não vê mais nenhum horizonte alegre através da dor – porque a dor, na verdade, tem sempre um sentido alegre. A dor é sempre um instrumento, sempre um meio de modificação de si que faz a potência crescer. Se não existe mais esse uso, se eu desaprendo ou me torno muito piedoso em relação à dor, se começo a levá-la muito a sério, então ela vira sinônimo de imperfeição e de falta. Esse é que é o mal. Então, a dor torna-se testemunha de que esta existência não tem suficiência, de que a natureza não tem autonomia, não tem forças próprias. Ou seja, que é preciso uma força exterior. E esta existência, na verdade, seria apenas um meio de punir vidas passadas ou então… Bom, daí aqui nós vamos ver mil delírios! Você tem os espíritas, você tem os católicos, mil variantes do mesmo sentido fictício que é afirma que a ‘a existência é, no fundo, uma via crucis’. Ou seja, nós existimos para cumprir a nossa parcela.

Nathalia – Para expurgar as culpas.

Fuganti – Isso! A existência como um expurgo, isso aí. E é aí inclusive, que o cristianismo vira mestre de todos. E é São Paulo que vai ensinar essa balela. Paulo, aquele sujeito cheio de ódios e que vai ensinar a ‘alegria e o amor cristão’, ele vai dizer: ‘na verdade, eu sofro porque sou pecador. Mas é porque eu sofro que eu posso expiar meus pecados e me unir  novamente a Deus, ser salvo’. Então, ele conclui dizendo ‘alegrai-vos irmãos, porque o sofrimento é fonte de salvação’. Essa é a alegria cristã, essa coisa obscena! Diz Henri Miller: ‘Isso é que é obsceno!’ Obsceno é sofrer desse jeito, levar a sério esse sofrimento com esse sentido. Isso é que é pornográfico! Há esse autoflagelo, esse ‘masoquismo’ ou esse ‘sadismo’ – apesar disso não ter nada a ver com esses grandes artistas que foram Masoch ou Sado, mas com o que foi feito do pensamento deles, essa interpretação se fez da obra deles – mas enfim, esse sadismo em ver os outros sofrerem e gozar com isso, gozar com o rebaixamento e o sofrimento da vida. E isso vai ter exatamente o sentido de criar um poder. Quer dizer, na medida em que a vida é miserável, em que se constata ela como miserável, mas a gente cria um sentido pra isso o que ocorre é que a gente acaba criando, ao mesmo tempo, um império. Um império espiritual! Mesmo que o Reino de Deus, ou o Reino de Jesus, seja de ‘outro mundo’, como dizem os evangélicos.

Nathalia – Em outras palavras, o que Paulo falou foi ‘bem aventurados os que não podem’…

Fuganti – Isso… E os miseráveis, porque deles será o Reino… do ódio, no fundo, né? Porque daí eles vão se vingar direitinho de toda a vida que, de alguma maneira, for intensa. É uma coisa espantosa, se for levar a sério o que é feito disso. Mas a questão que eu queria levantar é que, do ponto de vista da imanência, a transcendência é o delírio de um corpo sofredor. Nietzsche já diz isso no Zaratustra, que Deus vem da costela de um corpo sofredor, de um Homem que não sabe sofrer. Que não suporta o sofrimento, logo quer fugir do seu corpo, fugir da terra, então ele inventa outro mundo. Mas esse outro mundo ainda é um suspiro do seu corpo, porque ele ainda quer se preservar porque, no fundo, se ele realmente quisesse ir para o outro mundo ele se mataria. Por que ele não se mata logo, então? Ao invés de ficar aí se arrastando na terra? Sabe, ele não é honesto! Ah, ele ainda tem que expiar os pecados, etc? Mas enfim… O Nietzsche vai detectar que inclusive esses são hipócritas e mentirosos, eles no fundo querem ainda ficar na Terra e permanecer… É que nem as vidas mais medíocres que a gente vê: quanto mais impotente é, mais longamente quer viver. Porque acha que ainda não viveu o suficiente e a morte o apavora. O que terá ainda de fazer até poder ter uma boa morte, né? A pessoa nem sabe o que fazer. Ela se apavora e vai vendo que os anos vão passando, vai se aproximando da morte e o que ela fez da vida dela, não é?

Nathalia – Não viveu essa imanência.

Fuganti – E nunca vai viver, dentro desse ponto de vista. Vai pro inferno? Não. Tá tudo certo, não inferno, não tem céu… Só que simplesmente ela desperdiçou a vida, né. Mas isso, da perspectiva da natureza é irrelevante. A natureza se dá esse luxo de desperdiçar os seus seres, porque ela os faz aos milhões. Assim como, sei lá, ela faz milhões de mosquito e muitos deles serão dedetizados. Enfim, então, também o homem joga fora sua vida e tá tudo certo. A natureza é exuberante, ela não precisa do Homem. O Homem é que precisa encontrar a natureza nele. Então o que é a transcendência? Na medida em que eu estou separado de mim mesmo, eu acredito que a fonte de realidade está fora, num outro plano. Isso é quando eu acredito numa transcendência. A imanência é quando eu percebo que tudo se faz no meio, e não na origem – seja ela remota, longínqua – ou num fim… Mas é no meio. O que é o meio? É sempre um meio de acontecimento. E o meio de acontecimento se confunde com apropria existência. Quer dizer, existir é uma zona de acontecimento. É na zona de acontecimento –  que está dentro da natureza, da vida – que a vida se encontra, que ela se inventa, que ela acontece e se eterniza. Ele é eterna aí. Não há nada fora. Se você quiser usar o termo ‘Deus’, então Deus é a própria natureza. Ele é imanente está aqui, em cada ato…

Nathalia – Ele seria produção constante de si, das coisas e das diferenças?

Fuganti – Ele é uma potência de se produzir e de se modificar a si mesmo, através de cada modificação dessa potência absoluta.

Nathalia – E com toda essa generosidade de produzir-se incessantemente, não importando o destino que cada coisa terá. Simplesmente produzindo…

Fuganti – O que é incrível aqui e eu acho que dá pra gente encontrar isso em Espinoza, apesar de muitos espinozistas sequer suspeitarem disso, é que uma vez que esse Deus de Espinoza tem infinitos atributos, o que então é o atributo de Deus? É a potência infinita de acontecer. Ora, ele tem infinitas potências infinitas de acontecer. Por exemplo, o pensamento é uma potência infinita de acontecer. Então, tudo pensa. O Sol pensa, a árvore pensa, a minhoca pensa. Há pensamento em tudo, é uma potência infinita de acontecer. Para cada corpo existe uma idéia, um pensamento. Então, essa potência infinita de acontecer é uma abertura. É uma abertura! Deus não precisa de segurança! Que venham mil Diabos…É tudo abertura! Então, essa abertura, na verdade, ao invés de deixá-lo mais triste, mais impotente e mais velho –como acontece com os homens reativos, que a vida vai passando e ele vai ficando mais velho, mais cansado, mais feio, mais doente, dolorido, mais tudo –  o Homem ativo (ou esse Deus de Espinoza) fica sempre mais forte! Quanto mais abertura, mais ele se potencializa: o que não me mata me deixa mais forte. Ora, a gente é capaz de viver sob esse ideal? Acho que isso é um desafio. Ao invés de fechar, a gente abrir. Mas abrir não de um jeito lascivo e ‘tudo vale’. Não é assim, nem tudo vale. Mas o critério de validade ou não se baseia em ‘Bem’ ou ‘Mal’. É um critério de profundidade, do que me intensifica e do que me desintensifica, do que me torna um trapo e do que me torna mais potente. Aqui é que está o critério! O critério ético é diferente da escolha do Bem e do Mal. Eu não estou vendo o que é bom e o que é mau, o que é justo ou injusto, verdadeiro ou não verdadeiro, o que é útil e o que é nocivo. Estou vendo o que me acontece na medida em que eu me efetuo, segundo a maneira que eu sou capaz de criar para me efetuar. Então eu sou corresponsável ou essencialmente responsável nesse acontecimento de mim mesmo. Aqui é que está a escolha. Aqui está a seleção, o critério! Então aqui eu percebo que tudo está na imanência. É por isso que nós temos a vida que merecemos.  É por isso que há o eterno retorno. E eterno retorno nunca é o eterno retorno do mesmo sobre o mesmo. A cada retorno é a potência que se modifica e se difere de si mesma. É o retorno da diferença, do que difere. A potência absolutamente infinita de diferir de si mesmo. É por isso que nunca se esgota. Se fosse sempre o mesmo, olha que coisa enjoada. Imagine, Deus morreria de tédio e a gente junto. Acabaria o desejo. O buraco vingaria, uma grande depressão, o nada. Sempre esses mitos antigos que falam da conflagração universal, né… De que há a origem, o desenvolvimento e o fim, daí volta pra origem, desenvolvimento, fim, volta… Essa coisa enjoada, essa mesmice pela eternidade a fora. Isso não faria sentido. Não haveria movimento. O movimento não é voluntarista, a partir da minha psique. O desejo é real, é um acontecimento que me atravessa. É esse o foco. É o que Nietzsche chamava de ‘o fio de Ariadne’, a superfície do acontecimento, sem o que não há efetuação dionisíaca. Esse fio de Ariadne, esse ato do acontecimento que faz com que o intensivo se continue a si mesmo de modo intensivo. Então aqui você tem imanência. Ou seja, o ato é imanente à potência. Não há potência sem ato. No fundo é isso que é imanência. Aristóteles acreditava que a matéria era a pura possibilidade de receber a forma que tinha o ato. E até acreditava que a forma era masculina e a matéria era feminina. E que a matéria não tinha ato nenhum. Na verdade, não existe potência sem ato. Ainda que seja um mínimo de ato, sempre tem um ato. E é por isso inclusive que eu posso afirmar que ao desejo não falta nada. Porque o desejo não é uma mera potência sem ato: já tem ato nele. O que é o ato nele? O próprio fato de existir, de respirar já é uma efetuação de desejo. De respirar, de comer… Ou de ver o tempo atravessando isso, fazendo isso… Pronto, já está atualizando, já está preenchendo! Porque o tempo já é o preenchedor. Então este é o ato da potência – o próprio tempo. E aí o tempo já é fonte de eternidade e não mais horizonte da morte.

Nathalia – E será o nosso assunto do próximo encontro, quando partirmos para a letra T…de Tempo.

E ou É?

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Nathalia – Então, nós ainda temos 8 letras! Creio que não vamos conseguir dar conta de todas hoje… Bem, voltando para a letra E, eu tinha algumas palavras em mente… Mas então, lendo Conversações com Deleuze, eis que me deparo com esta fala onde ele comenta Godard, explicando que ninguém compreende a maneira como ele trabalhar a partir do E. A conjunção E. Ele segue dizendo que nós usamos muito o É, ou seja, sempre nos remetendo ao ser em si, a uma essência irredutível, uma identidade… Mas quando usamos o E, falamos de algo que é isso e isso e aquilo… Ou seja, sugerindo multiplicidade e diferença, em lugar de uma essência.

Fuganti – Sim, exatamente. Já Hume era um filósofo do E. Hume é do século XVII e é o filósofo que mais investe na conjunção E. O É foi o começo da decadência da filosofia. ‘Isto é aquilo’, ‘isto é isto’. Então, você imagina uma natureza, um substantivo, um sujeito e encontra os seus atributos que constituem a identidade dessa natureza. Você vê a natureza de modo estático. E o “E, na verdade, é uma ligação. A vida existe já de modo plural, tem várias ligações ao mesmo tempo. E cada ligação leva a várias outras, que também acontecem ao mesmo tempo. Outras ainda acontecem de modo sucessivo. Algumas ligações coexistem e outras se sucedem. Então tudo funciona por conjunção, por agregação.

Nathalia – Ele cita o exemplo da porta da fábrica que não é a mesma para o operário quando ele entra para trabalhar, ou quando ele sai por ela no fim do expediente ou quando ele passa em frente a ela desempregado.

Fuganti – Exatamente, é isso mesmo. Você sabe que existe um etólogo chamado Uexkull, que escreveu uma obra fantástica chamada ‘Dos animais e dos homens”, e ele diz assim: O que é um objeto? O objeto é um sentido. E o que é o sentido? É sempre uma relação. Exemplo, uma pedra. O que é uma pedra? Você usa ela para revestir o chão, fazer um caminho e ela vira um calçamento. Mas se eu uso ela para atirar num animal ou em alguém ela vira uma arma. Então, uma coisa é a função caminho de pedra, outra coisa é a função arma. ‘Ah, mais foi o mesmo material que eu usei, o material pedra’. Bom, mas não é o mesmo objeto. Então a pedra é isso e aquilo e aquilo outro… Por exemplo, uma árvore para a formiga é um mundo! E para um dono de serraria ela é mais um cifrão no bolso, né? Ou para o pica-pau, é o seu alimento. Então, o que faz Deleuze? Por acaso ele diz ‘a árvore é isso’? Não, ele diz que a árvore é isso e isso e…  Ou seja, ela devém, ela se torna muitas coisas, dependendo do encontro que ela faz. Ela é uma potência de realizar encontros. E cada encontro tem um sentido ou vários sentidos. Cada encontro onde tem um acontecimento tem uma pluralidade de sentidos. Dependendo da força que se apodera desse encontro, vai criar um sentido.

Nathalia – O que tem a ver com o que você estava falando a respeito de não existir um ‘sujeito’, não é?

Fuganti – Sim. Mesmo porque a árvore, por exemplo, se modifica na medida em que ela se encontra com as coisas. Ela se modifica na medida em que se relaciona com o pica-pau. Ela se torna outra coisa. Então, cadê o ‘sujeito árvore’? Não tem o sujeito árvore. A árvore é uma potência de se modificar a si mesma. Ela se torna diferente dela mesma a cada momento. Então, onde é que está o sujeito ou a substância? Ela não fica. Diz Espinoza, ‘não há substância, o que existe é modo. O que é modo? É potência de modificação. Não tem substância.

Nathalia – Neste sentido, falar em ‘identidade’ perde completamente o sentido. Seriam ‘entidades’?

Fuganti – A identidade é uma função de poder. Ela é inventada para exercer controle, para enquadrar, para julgar… A identidade é um instrumento de poder. Porque, no fundo, a identidade é sempre simulada. Ela não existe. O que faz com que eu acredite que eu sou o mesmo agora em relação ao que eu era há 20 minutos? O que faz com que eu acredite que você seja a mesma que entrou aqui e a que está aqui agora?

Nathalia – E, de fato, não me sinto a mesma.

Fuganti – A consciência só compreende o efeito de nós mesmos. Como ela é ignorante das causas, ela vai inverter: ela vai por o efeito no lugar da causa. E assim ela começa a encadear as coisas, vai dizer que ‘isso é efeito e isso é causa’, ‘isso causou aquilo’. Então ela vai criando uma cadeia, uma continuidade, desde a nossa origem até o nosso fim. Vai criando uma cadeia contínua de ‘bom sentido de mundo’ desde o meu nascimento, desenvolvimento do meu corpo e da minha mente, até o estágio atual da minha vida ou até quando eu morrer. Ela vai formando o mesmo em mim. Um mesmo que fica mais complexo, que vai adquirindo outros elementos, mas que ela acredita que é o mesmo. E isso é uma grande ilusão, porque a consciência é a parte mais rasa de nós mesmos. Ela é o último efeito de luz da imagem. A consciência não tem profundidade, quase. Claro, estamos falando da consciência enquanto resultado de encontros. Existe a consciência como resultado de acontecimentos, como resultado de autênticas experimentações, de pensamentos. Então a consciência do pensamento é diferente da consciência da imaginação. Ainda assim, por mais que seja a consciência do pensamento, ela é sempre efeito. Nunca a consciência é causa. Como nós acreditamos que somos os mesmos, jamais estamos no pensamento: estamos na consciência. É a consciência que apreende, digamos assim, a mudança a serviço de um mesmo. No entanto, se há pensamento de fato, eu sei que a mudança me modifica a mim mesmo na essência. E não simplesmente agrega experiências a um mesmo que se torna mais inteligente, que se torna mais sábio, que tem o mesmo corpo, a mesma idade, o mesmo ideal… Isso tudo é uma ilusão. Bem, mas funciona? Sim, funciona enquanto os homens se contentam nesse nível de acontecimento da vida e de experimentação de si mesmos. E aí o que ocorre? Ocorre que o homem acaba não desenvolvendo mais uma vontade de se aprofundar, porque ele começa a temer essas forças que nos constituem. Essas forças começam a nos ameaçar, porque nós sistematicamente as abandonamos, apesar de elas estarem aí, pois sem elas nós não existiríamos. E, no entanto, a gente acha que elas são caóticas, que elas ali estão nos ameaçando. E a gente se defende delas o tempo inteiro… Dessas forças, desses afetos, desses impulsos. A gente faz o quê com eles? Se eles são anárquicos e caóticos, a gente os submete a uma ordem racional, a uma representação que, no fundo, é uma cadeia de signos. A gente da forma a eles, a gente traduzou seja a gente trai essas impulsões. A gente trai quando a gente traduz, porque ao traduzir a gente inverte: a gente acha que são forças anárquicas quando, na verdade, são forças necessárias, constituintes do nosso corpo intensivo e da nossa mente intensiva. Mas esse corpo e essa mente intensivos não encontram lugar na sociedade. Não tem lugar para o acontecimento na sociedade. O acontecimento acontece    às costas de nós mesmos. Então você sempre precisa dar formas ao acontecimento, formatar o acontecimento. E com que se formata? Com a consciência. Qual das consciências? Aquela mais miserável, ou seja, aquela que está no lugar da nossa impotência de acontecer.

Ou seja, a gente sempre bota uma forma no lugar do acontecimento. O acontecimento é nadificado, esse é o ponto. Então há uma nadificação do acontecimento. Porque o acontecimento, de fato, não existe, mas aí a gente confunde aquilo que não tem existência como sendo nada. A gente não vê a realidade do que não tem existência. Porque realidade não se reduz ao que existe: há uma realidade que é não-existente. Então há uma dimensão do acontecimento que é não-existente, que nunca vai se reduzir à existência. A existência é uma parte do acontecimento. Aí a gente diz assim: ‘ah, então se ele não existe, ele é nada’. Mas quem disse que o que não existe é nada? O que não existe é real e é virtual! Se fosse nada, então eu simplesmente reduziria a realidade ao campo das formas. Mas quem disse que as formas são a última palavra em realidade? Ao contrário, elas são o último efeito da realidade!

Enfim, então esse aspecto que faz com que a gente nadifique o acontecimento é o mesmo aspecto que faz com que a gente invista na forma, na representação, no objetivo, no controle, na razão… A gente desacredita no acontecimento e acredita no outro mundo, acredita na forma ideal! Aí chamam esses que são ateus de niilistas! Engraçado, né? Inverte tudo. O niilista, o descrente é ‘aquele que não acredita no outro mundo’. Ora, mas não é o contrário?! Niilista não seria aquele que inventou o outro mundo? E que desacredita na vida e no acontecimento?

Então a vida é minada, a confiança no acontecimento é minada. Por quê? Porque o acontecimento não tem realidade. E pra quem ele não tem realidade? Pra quem vive entupido, atolado. Como diz Nietzsche, vive no ‘pantano do niilismo’. O que é o ‘pantano’, pra Niezsche? Ele usa esse símbolo para falar sobre esse atoleiro, que são as paixões. O que é atolar-se nas paixões? É ser incapaz de manter as paixões como fluxo. Mas, para manter a paixão como fluxo, ela tem que virar ação, ela tem que se transformar em ação e intensidade. Mas não! A gente se atola na paixão e cristaliza a paixão! E quando isso acontece, a gente acredita que aquilo é uma substância em si. Ora, mas aquilo é só uma paixão atolada! Então é esse nosso atoleiro afetivo que faz com que a gente desacredite no acontecimento, porque de fato o acontecimento não existe e não é real se a gente está atolado afetivamente. Aí o que ocorre: eu confundo a parte do acontecimento que existe com um fato, eu o reduzo a um fato. Mas o que é um fato? É uma interpretação. É igual à Folha de SP dizer que ‘Hugo Chaves é um ditador populista’, esse é um fato da Folha de SP ou do capitalismo e tal. E como se explicam os outros acontecimentos que a mídia nem relata, nem dá conta?

Nathalia – Tanto que há uma frase no próprio jornalismo que diz que ‘um fato que não é noticiado não existe’. Porque o fato é a notícia…

Fuganti – Não é?! E para o homem reativo é a mesma coisa. E aí fica um pouco pior se a gente for mais a fundo: mesmo que você desminta o fato, diga mil vezes que aquilo é mentira… Na milésima primeira vez, quando eu deixo de desmentir, eu volto a investir naquele fato mentiroso! Por quê? É porque ‘eu tenho o mal dentro de mim’? Não! É só porque o fraco precisa daquela mentira. É só por isso. É uma questão de fraqueza, não de mal na essência. Eu não acredito em Diabo, em Mal… E nem no Bem, não é? O Bem e o Mal são duas ficções. É preciso chegar à necessidade da mentira: Por que o homem inventa? Por que se agarra em fatos? Por que a mídia é mentirosa? Porque sem isso não há continuidade do poder. Isso é necessário. Então, ao invés da gente ficar indignado, como Chomski que fica indignado com a mídia americana…

Nathalia – Quer dizer, é chutar galinha morta… Todo mundo já sabe como a coisa funciona!

Fuganti – Não é?! Então a gente tem que começar a cuidar de si mesmo! E não tem nada a ver com egoísmo isso. Ao contrário, é a coisa mais básica, mais be-a-bá! Cuidar do corpo, cuidar da mente, do desejo…De que maneira eu existo e crio as condições da própria vida se efetuar em mim? Que uso eu faço da minha linguagem? Eu estou neste momento fazendo uso da minha linguagem, falando, ouvindo… Enfim, eu faço um uso disso. Que uso eu faço da minha sensibilidade, do meu olhar, do meu ouvido, do meu ânus, do meu pulmão, dos movimentos do meu corpo, do meu sono, da minha vigília? Que uso eu faço dos alimentos? Então eu sou corresponsável, sou cúmplice – não culpado, mas cúmplice. Então é essa zona de cumplicidade que é fundamental a gente detectar. E enquanto a gente não detecta, fica sempre ou acusando o outro ou acusando a si mesmo. Não é? De maneira que a cumplicidade tira a gente da culpa, tanto da acusação do outro – que é o ressentimento ou o ódio – quanto da acusação de si, que é a má-consciência ou o remorso. Ultrapassam-se esses dois venenos da vida para dizer assim: “O que eu estou fazendo daquilo que me acontece? Porque onde é que está o pior dos males? Não está no mal que me acontece, mas no mau uso do mal que me acontece. Aqui ele está! E, outras vezes, no mau uso do bem que me acontece. Então eu sou cúmplice disso. Por que eu não começo a tomar a minha vida nas próprias mãos, ao invés de acusar, de choramingar, dizer que o mundo está errado?

Nathalia – Para se esconder da própria mentira…

Fuganti – Não é? Aí é fácil! É isso aí… Ou seja, uma desoneração de si, uma desobrigação de si! E os mais moralistas são os que mais fazem isso. São os mais irresponsáveis diante da vida. Eles não cuidam de si, ficam se metendo na vida dos outros, querendo controlar a vida dos outros, porque a deles mesmos já nem tem mais o que controlar: pois que já nem tem mais força ali para acontecer! Diz Nietzsche: ‘a Moral foi inventada para controlar as forças animalescas do Homem’. Ah, mentira. A moral foi inventada para esconder que já não tem mais força nenhuma dentro do Homem! Então, enquanto eu não vejo o acontecimento como fonte de desejo e de realidade, como motor do real, eu vou precisar do ideal.

Continuação:

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Um encontro

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Luiz Fuganti, um encontro

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No ano de 2000 e alguma coisa formei-me em jornalismo, numa dessas faculdades que não me despertaram nada de vivo ou novo. Sem jamais ter trabalhado num único jornal, abandonei o território antes mesmo de constituí-lo. Meu trabalho de encerramento de curso já anunciava a total inaptidão para a carreira, uma vez que propunha um explícito envolvimento da subjetividade do autor/repórter na produção do texto jornalístico, a partir das impressões, dos afetos, dos encontros com o fora. Que o autor pudesse ao menos ser honesto, ao assumir que ele necessariamente imiscui-se naquilo que está comunicando, mesmo que ele próprio não saiba como está se posicionando diante dos acontecimentos. Assumir a si mesmo como uma testemunha, como ‘um alguém que esteve ali’.

Nunca soube cumprir bem o papel de vestir um outro Quem para ir ao mundo levando perguntas nas mãos. Pois as perguntas jamais me pertenceriam, a pauta me enviesaria o olhar e a edição mutilaria meu texto, de modo que eu sempre estaria emprestando meu corpo a um outro quem. Até aí, nenhum problema, afinal o próprio Deleuze nos diz que falar, mesmo quando se fala de si, é sempre um ‘falar no lugar de alguém’. Mas que este alguém seja uma instituição retardatária, conservadora, autoritária como a mídia, sustentáculo dos discursos do poder… aí não, isso eu jamais consegui fazer!

Não porque me julgasse melhor que os outros colegas e amigos que estão, de alguma forma, lutando para tornar esse veículo mais saudável e útil à vida humana. É que, no fundo, eu nunca consegui acreditar nessa linguagem de uso comum e que vulgarmente empregamos na produção da notícia. Não existe linguagem inocente, que não carregue algum tipo de mitologia. Portanto, investigar ‘Quem pergunta?’ sempre me pareceu mais importante e preferi deixar de escrever a falar por alguém ou em nome de uma força que desconheço.

Mas o porquê de eu nunca ter me enquadrado no perfil de uma jornalista é algo que, de fato, ainda não havia compreendido muito bem até a noite de ontem, após uma arrebatadora conversa com o filósofo e arquiteto Luiz Fuganti. Na casa dele, acompanhada por Andrea Drigo e Maria Fernanda, creio que vivi algo que se possa chamar de um ‘encontro’. Ora, os encontros… Que será isso? Será que nós sabemos o que é, verdadeiramente, viver um encontro com todas as implicações e os desdobramentos que ele nos provoca? E eu lá quero isso? Estou pronta pra isso? Pelas bordas que nos contornam e que nos conectam, na superfície das fronteiras, onde as trocas acontecem muitas vezes de maneiras sutis, porém violentas, vi que algo se sucedeu em mim a partir do contato com a presença dessa figura rara. As falas de Fuganti são absolutamente desconcertantes em todos os níveis e sintaxes. A esse golpe de potência, eu me dizia ‘agora vai, mergulha nisso Nathalia, já que foi você mesma quem procurou’ – Mas quem em mim procurou?.

Quanto de mim já não estava começando a se acomodar? Quanto de mim já não queria se ajustar numa certa estrutura, num certo padrão de vida, num certo jeito de ser ou de vestir, no casamento, na casa, nos projetos, no trabalho, enfim nessa forma que criei: este pódium que penso ter, finalmente e com muito empenho, ‘conquistado’. Não, eu realmente não estava ligada nesse ‘quem’ em mim. Estava lá pronta para criticar os outros, falar sobre os outros, apontar os culpados, lastimar os fracos, maldizer os poderosos, desfraldar os mentirosos e me congratular com os que, assim como eu, ‘recusam-se a se colar no poder’. Mas, ops…

Eis que há alguém ou algo em mim que também quer reagir, quer conservar, quer manter o controle e o padrão, quer chegar a algum objetivo. Não estou a salvo desta pegajosa atração do poder que nos quer apegados a qualquer coisa que nos impeça de fluir. Estava lá, sorrateiramente se colando em mim enquanto eu, absorta nas ações, nem havia me dado conta… Até a noite de ontem. Percebi, não sem espanto e certo desconforto, quanto de mim também não vinha querendo se estabelecer e, com isso, perder a potência. Pois o apego a qualquer forma e de qualquer gênero configura um bloqueio dos fluxos, das forças criativas, potentes e afirmativas da vida.

É fácil falar sobre isso quando se está morto, alheio, achando muito bonito discutir esses conceitos e se sentindo bem consigo mesmo por estar falando sobre filosofia. Mas sentir tudo isso, abalar-se com isso, incomodar-se a ponto de querer sair deste lugar, desfazer-se das formas para fluir com as linhas, deixar ser atravessado pelo acontecimento e se preencher do que quer que seja, isso já é outra conversa! Quem é que banca viver dessa maneira? E essa é a pergunta que eu não fiz a Luiz Fuganti – é ele quem nos lança. E nos apresenta a vida e a natureza no seu mais alto nível: como infinita potência de produção e diferenciação de si.

E com vocês: A natureza!!!!

Abecedário de Luiz Fuganti

D de DESEJO (clique aqui para ler)